Sobre livros e TV
Ouvimos certa vez a história de um funcionário público que todos os dias obedecia a sua rotina: pela manhã, tomava seu banho e caminhava para o trabalho. Passava pela banca de jornal, parava para comprar seu exemplar, seguindo em frente parava na padaria e tomava seu café; cumprimentava os passantes que encontrava pelo caminho, em cada esquina, em cada sinal de trânsito. Em sua repartição, trabalhava até à tardinha e voltava para a casa percorrendo o mesmo caminho. Ao chegar, ligava o aparelho de TV e ali ficava até o sono aparecer, para no dia seguinte cumprir o mesmo ritual.
Certa vez, numa tarde, decidiu que em vez de parar na padaria da esquina entraria numa livraria, pois muito tempo havia que não comprava um bom livro. O homem chegou, viu dezenas de livros expostos na vitrine, “os mais vendidos”, “os maiores sucessos”, “as novidades” e outras centenas ou milhares bem organizados em estantes arrumadas por assuntos diversos e autores. Descobriu que muitos escreviam livros: empresários, artistas, políticos, pessoas comuns e até bandidos. Leitores compenetrados, ora lendo, ora folheando; funcionários atenciosos, uniformizados, e uma infinidade de publicações que ele jamais imaginou existir, estavam ali.
O quadro para ele era inédito. Não esperava algo tão portentoso para uma simples idéia de comprar um livro. No seu íntimo ele indagou: “alguém dará conta de ler isso tudo?”. Por um momento ficou amatutado à porta, até ousar dar os primeiros passos para dentro da loja. Rodeou-a por umas duas vezes até retornar em direção à saída.
Ficou tão apreensivo com tantas opções em livros, cores, assuntos, autores, e tamanho foi seu espanto pelo que viu, que não conseguiu escolher o que ler. Saiu dali atoleimado, passou na padaria, levou seu pão e ficou em frente à TV até o sono chegar.
Quando convivemos diariamente com os livros, aprendemos a “garimpar” as ofertas das livrarias. Mas essa não é a realidade da maioria dos brasileiros, nem dos estudantes, que quando chegam às universidades lêem basicamente livros técnicos e pouco contato têm com outro tipo de leitura. Fica-nos a impressão de que, dos nossos grandes autores, são cada dia mais raras as obras nas livrarias. A opção daquela não era propiciar a boa cultura, mas o iminente consumo. E se o assunto é o consumo a TV sabe vender muito bem os seus produtos.
A TV organiza as opções, diminui o esforço, secciona os gostos, direciona os impulsos. Essa aparente confortabilidade para o telespectador é um imperativo para o consumo. Consumimos literatura, saúde, lazer, educação e tudo mais sem precisar sair de casa, vendo TV. Nos últimos anos, devido aos precários recursos culturais, às deficiências da educação e aos perenes problemas econômicos, a TV se tornou uma opção cultural e educacional. Sua linguagem visual de extrema perfeição plástica conduz a uma educação partidária, moldando a forma de transmissão de conhecimento a padrões ditados por ela.
A TV, apesar de estar no bojo de toda evolução do “modo de vida” dos últimos anos, instalou em nossos lares um retrocesso no campo do convívio e das relações humanas. A representação de pessoas reunidas à mesa das refeições, outrora ícone da família, foi trocada por modernos desenhos arquitetônicos onde a TV tem o seu espaço garantido.
Um professor contou-nos do tempo em que, quando criança no final da década de 60, morou num bairro periférico de uma grande cidade. Naquela época começava a ser comum a família se reunir para assistir televisão, geralmente após o jantar, antes de dormir. Ficavam todos estirados nas poltronas ou pelo chão até tarde da noite. Um bocejo do pai, ou a vinheta do final do programa era o sinal para todos irem dormir. A TV já não era uma novidade tão recente, mas poucas famílias possuíam televisores.
Disse-nos esse professor – que anos mais tarde, já no magistério, lecionaria para alunos informatizados e conectados ao mundo cibernético e tecnológico – que uma coisa lhe chamava à atenção naquela época: as noites em que faltava energia elétrica no bairro. Esse lapso da civilização moderna causava um retorno às conversas e aos temas pertencentes ao mundo individual de cada um e, consequentemente, ao mundo da família.
Para passar o tempo até a luz voltar, ficavam conversando sobre assuntos caseiros, ou contavam histórias e fatos engraçados. Sobre o que lhes era peculiar e familiar falavam. Os argumentos não eram trazidos pelo aparelho de TV. Ficaram remotas em sua mente as lembranças do tempo em que não havia televisão em sua casa. Poucos foram os momentos perceptíveis para ele da reunião familiar sem haver, de alguma forma, a mediação televisiva.
É curioso lembrar que os televisores também podiam a qualquer momento interromper a transmissão da programação – enchendo a tela de chuvisco – até se ouvir a voz dizendo: “ficamos fora do ar por alguns instantes por falta de energia elétrica em nossos transmissores”. Algo impensável hoje em dia.
É natural que a evolução da TV traga sempre ingerência sobre o modo de vida e os costumes, o que não é natural é ficarmos desatentos a isso.
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